Em defesa do Direito Universal à Contemplação e Reflexão dos bens Culturais: O Calvário de Cristo Hoje
novembro 03, 2025O painel que reflete a realidade das pessoas que viveram uma situação de pobreza e sofrimento em Esperantina-PI, bem como suas lutas sociais, retrata também os desafios enfrentados pela população pobre nordestina e brasileira.
Por séculos, essa parcela da sociedade conviveu com condições de extrema miséria e injustiças, e parte expressiva ainda hoje convive. 
Entre 1980 e 2000, setores da Igreja Católica, incluindo a de Esperantina, por meio da teologia da libertação, apoiaram a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e estimularam movimentos populares a atuarem no enfrentamento de injustiças sociais e práticas exploratórias promovidas por empregadores e proprietários rurais. Essa trajetória, em Esperantina, está ilustrada no painel “Calvário de Cristo Hoje”, que reacendeu agora nova polemica na cidade.
Em 2016, o pároco da Igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança, a época, iniciou uma campanha para reformas no edifício religioso. Durante esse processo, foi considerada a remoção do painel artístico criado em 1983 por um artista de Pedro II – PI, originalmente encomendado pelo Padre Ladislau João da Silva, com o apoio das comunidades e movimentos populares de Esperantina. O debate acerca da possível remoção do painel motivou significativa discussão no município, culminando no tombamento do imóvel “Igreja Matriz” e do próprio painel pelo Governo do Estado, conforme Decreto nº 17.114 de 20 de abril de 20217, integrando ambos ao Patrimônio Artístico e Paisagístico do Piauí.
Com o tombamento, o prédio da Igreja Matriz da Boa Esperança e o Painel “Calvário de Cristo Hoje” são patrimônios artísticos e paisagísticos do povo do Piauí, representando valores culturais, históricos, artísticos e religiosos. Juntos, compõem um importante conjunto artístico cultural para a sociedade piauiense. Esconder o painel atrás de uma cortina, algo que durante a reforma da Igreja fazia sentido para protegê-lo, acaba privando qualquer cidadão – especialmente os piauienses e esperantinenses – do direito de conhecer, apreciar e interpretar a obra artística religiosa presente no presbitério da Igreja.
Em sociedades desenvolvidas e instruídas, produções históricas, artísticas, culturais e religiosas como o Calvário de Cristo Hoje são geralmente valorizadas, reconhecidas e preservadas. Essas obras constituem uma parte relevante da história local sob a perspectiva artística, contribuindo para o fortalecimento do orgulho do povo local e para a preservação da memória histórica coletiva das futuras gerações. Mas, em Esperantina a arte religiosa gera polemica e contestação.
A cortina que cobre o Calvário de Cristo Hoje deveria ter sido retirada há tempos, mas permaneceu devido à orientação de uma igreja espiritualista em Esperantina, desenraizada da realidade do povo que sofre injustiças. No contexto atual, reconhecer, preservar, valorizar e defender esse patrimônio histórico, cultural, artístico, religioso não é apenas um dever de preservação da cultura, mas também um compromisso ético com a memória e a identidade de um povo que, por meio de suas lutas e manifestações, buscou – e continua buscando – dignidade, cidadania e reconhecimento. Portanto, trazer novamente o Calvário de Cristo ao olhar das pessoas representa um gesto de respeito à trajetória de um passado da Igreja e um convite para que novas gerações compreendam, por meio da arte, os desafios pelos quais possou – e passa – o povo de Esperantina.
Algumas pessoas, nas redes sociais, expressam desconforto em relação às imagens do Calvário de Cristo Hoje no presbitério da Igreja, alegando que seriam associadas à violência e a agressividade e poderiam perturbar os momentos de orações. Contudo, obras como as pinturas da Capela Sistina, no Vaticano em Roma, que apresentam corpos nus, corpos abraçados, glúteos expostos, pessoas caídas ao chão, desde o século XVI não têm interferido na prática religiosa de Papas, Cardeais, Bispos, freiras e fiéis que vão à capela para orações.
A decisão de manter ou retirar a cortina, tornando o painel acessível ao público, ultrapassa questões religiosas e evidencia debates políticos relacionados à ocultação da memória histórica coletiva. Ao abordar a exposição Calvário de Cristo Hoje, ressalta-se o compromisso com a transparência histórica, bem como a garantia do acesso universal aos bens artísticos, culturais e religiosos, promovendo também o incentivo à reflexão.
Por Francisco Mesquita de Oliveira. Sociólogo e Professor Associado na Universidade Federal do Piauí – UFPI.

								
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